Estado de São Paulo tem aumento em recém-nascidos não registrados pelo pai pixabay

Mais de 10 mil recém-nascidos foram registrados sem o nome do pai em São Paulo nos primeiros quatro meses deste ano. Isso representa 5,6% do total das 180.729 crianças nascidas no período e indica mais mães responsáveis sozinhas pela criação dos filhos. Os dados são da Arpen-SP (Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais).

No total, foram 10.065 de novas crianças nessa condição, número que supera o dos últimos anos e perde apenas para o dos quatro primeiros meses de 2018, quando 10.462 foram registradas sem o nome do pai na certidão de nascimento.

Por trás de estatísticas, são vidas de pessoas em desenvolvimento e formação de caráter sem uma referência paternal biológica. O que pode ser “menos pior”, nesses casos, segundo o sociólogo e professor Kassiano César Baptista é o fato de que algumas crianças têm referências paternas de avôs, tios ou padrastos que acabam exercendo essa função e mães que seguem dando o melhor de si, ainda que, muitas das vezes sobrecarregadas, para que o filho não sinta falta da presença paternal.

Entretanto, essa questão vai muito além: a falta de responsabilidade dos pais e o fato de muitas dessas crianças sentirem-se abandonadas e rejeitadas por eles é algo com impacto ao longo de toda a vida. Como é o caso da assistente administrativa Grazielle Silva, hoje com 29 anos, e que não teve o registro do pai quando nasceu.  “Minha mãe tentou contato várias vezes, mas ele simplesmente não quis, me rejeitou totalmente”, disse.

Apesar de Grazielle, que é mineira, mas veio morar em São Paulo aos 8 anos, ter sido criada pela mãe e o avô, ela conta que a falta do pai a impactou psicologicamente, afetando, inclusive, os seus relacionamentos. Além disso, não saber quem é o pai e o motivo de tê-la rejeitado a incomoda. “Se eu soubesse um caminho que seria necessário eu seguir só para conhecer o meu pai, eu iria. Quero saber o motivo dele não ter tido nem curiosidade em me conhecer”.

A assistente é uma entre diversas outras pessoas que se sentem abandonadas, trocadas e deixadas de lado, como se não fosse importante o simples fato de sua existência, de carregar o sangue e a genética de gerações, e que isso não vem só por parte da mãe, mas do pai também.

Com o objetivo de ir mais à fundo no assunto, a reportagem do R7 ouviu especialistas para entender o fenômeno. A professora do departamento de psicologia clínica da USP (Universidade de São Paulo) explicou que, na verdade, isso faz parte, também, de uma questão cultural.

“Nós vivemos em uma sociedade patriarcal, sexista, machista e que foi constituída justamente para que as mulheres pudessem exercer funções de cuidado de casa, criação dos filhos, enquanto o homem pudesse estar em uma posição de poder, que trabalha e mantém os privilégios”, relatou.

Para a sociedade, mais um caso de filho sem pai; para especialista, questão cultural

Para o sociólogo Kassiano, não existe uma normalização desses fatos pela sociedade, e sim uma questão cultural que há desde os tempos antigos em todo o Brasil e que são refletidos hoje. “Não existe um papel social de homem ou mulher, isso não é dado pela sociedade, é uma criação. São padrões e estereótipos culturais de machismo e do patriarcado que foram criados desde os tempos antigos. As pessoas tendem a achar normal algo que é cultural”.

Segundo ele, para extinguir esse padrão na sociedade, é necessária uma mudança de cultura. Apesar de assuntos como esse serem mais abordados hoje em dia, o julgamento social segue pesando mais sobre às mães.

Em contrapartida, Gustavo Fiscarelli, presidente da Arpen Brasil, instituto que gere os cartórios nacionais e é responsável pelos dados levantados sobre a quantidade de crianças sem registro, explica que esses números discrepantes mostram mais sobre os filhos. “Os filhos são as vítimas, aliás, eles serão prejudicados”, disse.

Fiscarelli, que também é pai, aponta que exercer a paternidade é obrigação e deve fazer parte de uma política pública que possa exigir isso. “As mães provam todos os dias que conseguem fazer tudo independente do homem, mas estou falando sobre uma questão de direito da criança. Direito à herança, afeto, carinho e presença por parte dele”.

O registrador Lucas Tambasco, que trabalha no 48° Cartório da Vila Nova Cachoerinha, na zona norte de São Paulo, relata a tristeza de, em muitas das vezes, precisar registrar o nascimento de uma criança sem o nome do pai. “De dez registros de nascimento que eu faço por mês, por exemplo, pelo menos três ou quatro são sem o nome do pai. É triste saber que ao invés de estarmos diminuindo essas taxas, está só aumentando”, desabafou.

Além disso, o funcionário do cartório relatou que nunca vai considerar isso normal. “Eu preciso fazer perguntas muito pessoais quando a criança é registrada só com o nome da mãe e dá para perceber que elas ficam meio constrangidas. Eu preciso perguntar se elas querem indicar quem é o pai ou se não quer, qual o motivo, é muito triste”. Lucas afirma, ainda, que boa parte delas têm entre 15 e 21 anos.

Final feliz que nem sempre todos têm

A estudante de odontologia, Giovanna Campos, de 21 anos, não está nas estatísticas de pessoas que não foram registrados pelos pais. Ela tem o nome do pai biológico, mas o amor paternal veio mesmo do padrasto, segundo ela.

Giovanna e Paulo, o padrasto que se tornou pai

Giovanna e Paulo, o padrasto que se tornou pai Arquivo pessoal

O pais de Giovanna se separaram quando ela tinha 4 anos e, até então, ela e o pai eram como “unha e carne”. Ela culpava a mãe pelo pai ter saído de casa, mas, após o ocorrido, o homem se afastou da filha. “Me senti rejeitada. Tinha baixa autoestima, um medo de rejeição enorme e não entendia o motivo dele ter se afastado tanto depois de ir embora, eu continuava sendo a filha dele”, desabafou.

Algum tempo depois, a mãe de Giovanna se casou de novo e ela teve problemas de relacionamento com o padrasto, Paulo, por acreditar que ele “queria substituir o pai”. Segundo a estudante, ele teve paciência e a tratou com muito amor. “Cuidou de mim, me defendia quando minha mãe ia brigar comigo e, quando eu cresci mais, percebi que aquilo era, de fato, o amor de um pai”.

Mesmo depois que o irmão dela nasceu, que é filho biológico de Paulo, ela seguiu sendo a “filha do coração” dele.  “Hoje ele é o meu pai e eu não consigo nem imaginar os problemas que eu teria desenvolvido se não tivesse o amor dele ou se ele tivesse desistido de mim no começo”, completou Giovanna.

A psicóloga Claudia Oshiro ressalta que as pesquisas sobre os impactos que uma criança com o pai ausente tem durante a adolescência até a vida adulta bem como eventuais problemas de desenvolvimento que essa pessoa pode ter ocorrem há mais de uma década.

O melhor a se fazer, recomenda ela, tanto mães, quanto filhos, é procurar apoio em grupos de pessoas que passaram ou passam pela mesma situação, ir em busca de todos os direitos e, ressalta ela, “valorizar quem está junto e não a pessoa que optou por pelo abandono”.

*Estagiária sob supervisão de Fabíola Perez

 

By Evelyn

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